RIBEIRO, João Ubaldo. Viva o povo brasileiro. Coleção Mestres da Literatura Brasileira e Portuguesa. Rio de Janeiro e São Paulo: Editora Record, 1984.
A ficção de Ubaldo Ribeiro é um registro de uma sátira da história brasileira, desde o “viva” que aparece no título que poderá seguir caminhos distintos, homenagear o povo com os aplausos, honrarias ou simplesmente fazer com que esse povo resista diante dos heróis forjados onde o local de liberdade é representado em espaços atípicos, como um terreiro de candomblé, senzalas abandonadas e até nas malocas do Caboclo Capiroba.
A história e a anti-historia se entrelaçam nos séculos e séculos que aparecem na narrativa, na qual os "heróis" se mesclam com os "anti-herois" , tornando-os unos para conquista de benefícios. Quais as identidades que prevalecem na construção e busca da nacionalidade? Quem ouve o discurso das margens? Em “Viva o povo brasileiro” são nas vozes “inaudíveis” de ex-escravo mutilado, de caboclo, índios que a história do Brasil é passada a limpo.
O livro de João Ubaldo Ribeiro, baiano da Ilha de Itaparica, traz forte posicionamento político, uma vez que o autor se utiliza dos personagens para mostrar como a historia da nossa gente é mitológica em nome de uma construção de identidade nacional. Assim, o romance inicia com o processo de desconstrução de mitos, tendo como cenário a luta pela independência, na qual o herói Perilo Ambrósio é totalmente cassado pelo narrador e pelo escravo que ele o mutilou para forjar um ato heroico.
Perilo Ambrósio, um português rico, utiliza-se da guerra para levar vantagem e tornar-se o herói nacional, finge estar do lado dos brasileiros, com intuito de se apropriar das riquezas da própria família portuguesa. No entanto o seu heroísmo reside em se esconder das forças militares em momento de combate e matar um escravo, lambuzando-se do sangue inocente, mutilar outro para não contar a sua “ação de heroísmo” e assim, forjar a identidade de guerreiro pela pátria e tornar-se o barão de Pirapuama. Como grande figura do romance, Perilo cria para si uma autossuficiência exacerbada e a utiliza das formas nefastas, seja para estuprar alguém , assassinar ou para masturbar-se para impor a sua vontade.
O grande espaço do romance é justamente a Ilha de Itaparica, onde ocorre a modelação da identidade nacional. Talvez, sem intenção de reconto o romance trabalha com quatro séculos, XVII a XX sob o olhar dos excluídos, as guerras e conflitos vem à tona, através dos fatos históricos ocorridos nesse período, sendo que dessa vez, negros e índios, caboclo os grandes oradores , contrapondo-se com a versão oficial. O tema central é justamente a construção de identidade que parte da desconstrução de heroi nacional.
Em “ Viva o povo brasileiro” a grande heroína é Maria da Fé, fruto de uma violência sexual, ela forma um grupo de resistência a identidade legitimada ao povo brasileiro. Com a "Irmandade do Povo Brasileiro", o projeto de identidade desponta das classes populares, oprimidas e excluídas. O romance dialoga com a linguagem polifônica, sendo elite e povo, a voz do povo por muito tempo anulada ganha uma outra dimensão na narrativa de Ubaldo Ribeiro.
É interessante lembrar que o romance de João Ubaldo é de fôlego. Não é uma história fácil de ser compreendida, pois a linearidade sofre desarticulação, sendo que o romance histórico do século XX está contracenado com a história dos séculos passados, quando a morte de um adolescente pescador, alferes mártir, precisa encontrar uma outra alma para continuar existir e resistir. E século adiante, encontra-se no Caboclo Capiroba “terreno” propício de resistência a versão cultural imposta no país. Por não “servir” para a sociedade, o Caboclo Capiroba cria em sua maloca ( apicum) um local de resistência. A negação a imposição linguística, cultural e física torna-se Capiroba um “morto vivo” por não adequar ao modelo identitário do país, e o “canibal” esquisito é visto como objeto de repulsa, escárnio e exclusão social.
Assim como Capiroba, à medida que os personagens vão desconhecendo os intitulados heróis, os espaços de resistências políticas se multiplicam, sejam nas senzalas abandonadas, casa de farinha, acampamentos, terreiro de candomblé. Não resta dúvida que o texto de Ubaldo Ribeiro funciona como espécie de denúncia a história escrita que “apaga” a história oral, no qual o colonizador por ter um domínio com as letras e culturas forja o heroísmo nacional às custas de muitas mortes e mutilações. O guardião da história é justamente um cego que através da tradição oral vai passando de uma geração para outra o que acontecia nos bastidores de uma guerra...até chegar ao terreiro de Rita Popó.
O baiano Ubaldo Ribeiro consegue fazer do seu romance em quase 700 páginas uma grande paródia sobre as questões identitárias brasileiras desde a morte de um inocente “ Brandão Galvão” a outras mortes em nome da pátria livre, “mãe gentil”.
A memória e a história caminham na mesma direção e esta resenha atribuo créditos ao brilhante ensaio “Memória, historia e ficção” da pesquisadora Rita Olivieri- Godet, no qual ela “disseca” o romance desse nosso baiano e que muito me ajudou nas leituras feitas sobre a produção de Ubaldo Ribeiro.
Em “Viva o povo brasileiro” mostra uma luta vindo de baixo, das camadas pobres, uma luta na qual os guardiães da história encontram abrigo em local restrito, particularizado, mas de perseguição, resistência e permeados de poder. Uma história na qual as testemunhas foram violentadas e impedidas de falar, mas através de gestos, sons estranhos, as “verdadeiras narrativas” sobre fatos históricos são capturados e traduzidos. Como um grande quebra-cabeça as peças vão sendo colocadas em seus respectivos lugares e desnudando para o leitor como os representantes da elite se distorceram para permanecerem em seus locais de conforto.
Enfim, o livro de Ubaldo Ribeiro é uma excelente opção de leitura labiríntica, pois o tempo inteiro mexe com os conhecimentos prévios do leitor, não há linearidade das ações dos personagens com isso faz com que leitor e personagens se encontrem e se percam nos conflitos de guerrilhas sejam através de : Canudos, Paraguai, Farrapos, Independência, Abolição, República... Entre as idas e vindas das alminhas dos personagens, ( e por que não, dos leitores?) Patrício Macário um militar de carreira, sente-se angustiado com própria atuação nas guerras, chegando ao final do romance, Macário torna-se integrante da cultura popular, através da sua inserção no terreiro de Rita Popó. Mas é em Maria da Fé que a representação da nacionalidade é fortalecida, deixando de lado a identidade propagada pelo Estado-nação e assimilada pelo povo, mas na “Irmandade do Povo Brasileiro” o grito dos excluídos torna-se audível.
Acredito que a “Maria” que aparece no romance tem dupla carga, por ser mulher e trazer toda uma simbologia de resistência que já vem de outras épocas, as “marias” sofredoras, Maria, mãe de Jesus, a Santa Maria... todas capazes de romper com as correntes a elas destinadas, vencendo as lutas. Por outro lado ao ser acrescentado o “da Fé” há um reforço em seu nome, no livro de João Ubaldo Ribeiro, nosso baiano de Itaparica, a Maria heroína, guerreira leva em sua bagagem a “fé” em dias melhores.
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Bahia, junho/2014
Elisabeth Amorim
*imagem da web.
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