sexta-feira, 28 de abril de 2017

Cenários nordestinos(crônica)

                           
                   
Ao chegar à Bahia o carioca de Cantagalo, o jornalista e escritor  Euclides da Cunha(1866-1909) para cobrir a Guerra de Canudos  enxergou sertanejo pobre, caipira, miserável, inculto e descreve-o  como “Hércules-quasímodo”, uma mistura de força e feiura numa só pessoa. Quem eram os fanáticos que seguiram cegamente o beato chamado Antônio Conselheiro? Não sou de Canudos, nem presenciei o massacre da guerra, mas tenho que carregar essa marca literária da rebeldia baiana que jogaram sobre as costas... Todo baiano é sertanejo?  Todo baiano é desengonçado? Todo baiano é rebelde? Todo baiano é preguiçoso?  O cenário baiano pode não ser o melhor, mas confesse, ser baiano é outro nível.
Ainda bem que nunca me perguntaram se recebi algum conselho do grande beato para tornar-me escritora... os fogos proféticos anunciados já se cumpriram. Finalmente, posso seguir em paz o meu caminho. Acho que sou mais uma  sobrevivente da Guerra de Canudos. Nem se preocupe, leitor, não sigo pokmon,  baleia, lula, cobras nem lagartos... Sabe por quê?
 Gosto é de literatura, escrevo literatura, só não faço ganhar dinheiro com ela, mas isso faz parte da nossa cultura nordestina.  Jorge Amado por onde andava na região cacaueira via  brigas entre coronéis do cacau, emboscadas,  e meninos de ruas vivendo de pequenos furtos assim, das mãos poéticas os garotos foram transformados em “capitães da areia” na grande Salvador. Em suas andanças viu também mulheres faladas falando, impondo e se fazendo respeitar, mulheres da vida? Não, mulheres de vida vivida, sofrida e excluída, isso é bem diferente.  E nem me pergunte se conheci o “Pedro Bala” o líder dos capitães,  o “Professor”, um exímio contador de histórias para as crianças carentes, esse juro, queria conhecê-lo,  a “Gabriela”, uma retirante que chegou faminta à cidade de Ilhéus e transformou o costume da época,  “Tieta” e até a “Dona Flor”, mulheres emblemáticas com personalidades fortes,   também sinto informá-los, não tenho notícias.  Aliás, as personagens são paridos com muita dor, por sinal.  E isso não faz cesariana! A dor só não é maior quando tem quem as abracem.
Dona Rachel de Queiroz foi outra escritora que olhou para o nordeste e viu o quê? Uma seca miserável! A de 1915 que assolou o Ceará, onde gado e gente não tinham o que comer nem onde ficar. Uma seca que colocou o homem nunca condição subumana, disputando com os bichos o mesmo pedaço de carne podre.  Ei, como pode você me perguntar se eu conheci o Chico Bento com a sua família de retirantes? Poxa! O romance "O Quinze" traz esse cenário.  O Chico Bento não é o das histórias em quadrinhos de Maurício de Sousa, é o vaqueiro que ficou desempregado com a seca... Ah, deixe para lá. Já disse, ser baiano é outro nível, aqui tem muitos que leem além dos gibis.



Eta “Vidas secas”, meu Deus! Muito sol, muita dor, fome, sede, vaqueiros sem gados, crianças desumanizadas, mas acompanhados de um fiel animal de estimação, seguidores da Baleia! Desde a década de 30, no cenário nordestino já havia quem venerava Baleia. Dizer que essa baleia não passava de uma cadela magra e sarnenta, é apenas um detalhe.  Dessa vez veio de Alagoas esse olhar nordestino, Graciliano Ramos mostrou como o mundo é permeado de vidas secas. O mundo é cheio de patrões “espinhentos como mandacaru” e de “Fabianos” que recebem os espinhos no seu caminhar seco, sem vida, sem sonhos.
Você já parou para pensar como a literatura  ao centralizar o olhar para os problemas sociais de uma região, de certa forma contribui para os estereótipos? Muitos incorporam os personagens como se fossem reais ou padrões.  Recentemente, um aluno ouviu de um professor renomado: “Não gosto da literatura de Jorge Amado porque ele vulgarizou a cultura baiana escrevendo muitas imoralidades”.  Ele queria o meu parecer sobre essa fala, dai a necessidade dessa crônica. Logo eu, uma baiana qualquer que nunca consegui o  canudo de doutora? A minha escrita é marginal, sabia?
Bem, a primeira coisa a dizer é   “vulgarizar uma cultura” é o termo muito forte, mas vamos lá.  Disse ao aluno que toda opinião é pessoal, cada professor, seja  especialista,  mestre ou doutor na área,  tem a sua defesa  e muitas outras leituras para sustentá-la, cabendo ao ouvinte ou leitor abraçar ou não.  Apesar de conhecer os romances de Jorge Amado, minha leitura  é pessoal, frágil e apenas por prazer, não para detectar 'imoralidades', por isso penso diferente desse professor. Tudo é questão de olhar. O que você procura num texto literário? Mas  essa briga entre  a produção amadiana  e  intelectuais é antiga,  acredito que nunca terminará.  E como sugestão indiquei de dois romances, após as leituras  voltarmos a discutir e debater. Mas, a primeira vista, parece-me ser uma birra pessoal,  tipo “eu sou bom escritor, intelectual e não sou lido, enquanto o Jorge Amado que escreveu ‘imoralidades’ ganhou o mundo...”  o leitor conhece o final desse peleja.  Muito se parece com os olhares lançados para as produções de Paulo Coelho,  mesmo pertencendo a Academia Brasileira de Letras e sendo muito lido no mundo todo,  pessoas nos meios acadêmicos olhares enviesados “Não é literatura, mas manual de auto-ajuda de um bruxo!”  Tem a receita, Paulo?  Por favor, onde encontrarei a alma-gêmea que abraçará a literatura  marginal?


 Cada escritor tem o seu estilo, e Jorge Amado apresentou Ilhéus, Itabuna e toda a política dos coronéis para o mundo. A forma dele escrever é a sua marca. Se você me perguntar se eu falo palavrões ou escrevo, a resposta é não, mas como baiana, ouço constantemente.  Da mesma forma  Herberto Sales apresentou para o mundo o comércio desordenado de diamantes na Chapada Diamantina, através do romance “Cascalho”, voltando-se para as ações desumanas dos coronéis do garimpo. É o olhar de cada um para o seu lugar.  
Ah, tem também o baiano Antonio Torres que em “Essa terra” apresenta a cidade natal “Junco” e os sonhos e desilusões de sair do nordeste para melhorar de vida em São Paulo. As desventuras do protagonista “Nelo” que não consegue lidar com as perdas, decepções e sonhos desfeitos, por isso retorna a terra natal para cometer o suicídio. Uma terra que ama, chama, enlouquece e ao mesmo tempo enxota os filhos. É mais um cenário nordestino.
 Um cenário com uma cultura diversificada, rica, onde povos lutam,  escrevem, estudam  e  sonham sorrindo ou chorando, mas seguem vivendo a vida intensamente. É redundância? Não! É apenas o olhar desmontado nordestino! Onde tudo acontece com abundância, inclusive as violências contra a literatura marginal costumam ser redundantes também, mas vale lembrar que nessa guerra de canudos de quem é melhor na caneta, o Jorge Amado era advogado.


                                                        ELISABETH AMORIM



 *


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Literatura de mainha 6 - Afirmação de identidades

 Mais um vídeo para você prestigiar.  Textos básicos; O sapo - Rubem Alves O sapo que não virou príncipe - Elisabeth Amorim