domingo, 23 de abril de 2017

Mãos doloridas ( crônica)



          Os calos das minhas mãos não me incomodavam tanto quanto os olhares assustados. Olhares pesarosos, condoídos como se eu tivesse doze dedos. Meus dez dedos estavam no mesmo lugar, algumas elevações nas mãos faziam parte das conquistas diárias. Mãos de quem trabalhava de sol a sol, mãos de quem ajudou construir essa nação, mãos negras sim, e daí?
          De repente, tudo mudou? Para quem?   Não precisava mais sair da senzala para atender os sinhozinhos da Casa Grande, era aqui mesmo que a exploração acontecia. Limpava toda área, fazia o cafezinho, cuidava de manter os banheiros e   escritórios limpos. Essa não era a função de um serviço gerais? Mas fui aprovado para o administrativo! Cada dia a minha jornada de trabalho aumentava um pouquinho. Num dia,  fui  buscar o filho do patrão no colégio ao descobrirem que o "Negão" sabia dirigir,  outro dia a esposa do patrão precisava de alguém para limpar um telhado, em outro  era a piscina que precisava ser lavada,  meu nome era sempre o primeiro da lista. E minhas mãos não paravam diante dos constantes solicitações:
          -Negão, você poderia fazer isso para mim?
          - Negão, posso te pedir um favor?
          - Negão, sei que essa não é a sua função, mas você é tão forte...
          Falam que a escravidão acabou, mas se esquecem que a escravização continua no mesmo lugar. Quem tem mais explora quem tem menos ou nunca teve nada...Até a minha identidade estava perdendo, transformaram-me numa cor.   No dia em que  outro tão negão quando eu disse não, o seu emprego sumiu em plena luz do dia. Contenção de despesas. Realmente, lá precisava de alguém que desenvolvia múltiplas funções, caso isso não aconteça, teria  que ser demitido para  um outro negão mais qualificado assumir a vaga.
          Não sei como me resta tempo para essas reflexões, se meus patrões sonharem que  penso, logo deixarei de existir para eles.  Meu tempo será preenchido de tal modo que não sobrará  espaço para os pensamentos.  Já roubaram alguns sonhos, cassaram o meu diploma...  E querem me ver sorrindo...  Contava as horas para chegar a aposentadoria, agora nem sei se estarei vivo para tal desfrute. Enquanto caminho sem saber exatamente a direção que me colocará frente a felicidade, pego o papel e rabisco algumas rotas de fugas.  Descubro que a escrita me liberta, quebro todas as amarras. O caminho é árido para conquistar essa tal felicidade. Infelizmente, ela insiste em morar na margem oposta.
           
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                                                    Elisabeth Amorim



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