Pense numa mulher que fugiu das convenções de uma
época... Sou eu. Nasci em 1886, em Capivari – São Paulo e faleci 1973. Estudei
nas melhores escolas do Brasil, Espanha,
França...na adolescência permaneci em Colégio de Freiras. Filha e neta de
milionários. E o que me fez diferente? Joguei para o alto a tradição familiar e
mergulhei na arte... Inovação.
Numa época em a mulher teria que permanecer em casa, aprendendo a bordar, cozinhar e
obedecer ao marido. Comigo aconteceu o oposto. Aos dezesseis anos pintei a
minha primeira tela: Sagrado Coração de
Jesus, claro, reflexo da minha educação. Casei-me e em pouco tempo separei. Tive uma
filha, minha Dulce. Algo me inquietava, essa
vidinha de ficar em casa, esperando o André, não era para mim. Voltei de Paris para a fazenda dos meus pais
com a minha filha. Decidi ser dona do meu nariz.
Só que a fazenda também me sufocava. Eu queria
pintar, usar os pinceis. Mas precisava
da técnica. Uma mulher pintora em pleno século XIX! Imagine o escândalo! E o que fiz?
Voltei a Paris para aperfeiçoar o meu talento. No meio em que vivi, a
arte vira artificialidade. Conheci Oswald. Meu lindo poeta. Formamos uma dupla e tanto! Tarsila do Amaral
e Oswald de Andrade. Em 1922, voltei e fiz parte do grupo da Semana de Arte
Moderna. Com as minhas ideias revolucionárias, pois defendia que os nossos artistas
deveriam conhecer bem a arte europeia para ressignificá-la. Eu e meu amor,
Oswald, botamos para quebrar!
Eu, a mulher das artes e ele, o homem do
modernismo! Que pensamentos arrojados! Pena que a minha família sofreu com
crise do café. Em 1929... perdeu quase
tudo. Até Oswald comecei a perder também...
Ele com as ideias para modificar a literatura.
Fazer uma literatura diferente para o povo. Fiz uma obra que era a cara do meu
amor. É isso. Dizem que pintei o sete, mentira! Pintei foi o Abaporu e dei para Oswald de
Andrade. Ele sorriu muito, pois sabia que era
um recado: “ homem que come”... Tudo a ver com a proposta do Pau-brasil
e Antropofagia, nossos movimentos artísticos da época. Ele tinha razão. Temos
muito que aprender com os povos canibais, esses antropófagos nos deram lições
de vida seletiva. “Comer” só o que prestar, valer a pena. O resto é lixo, é podridão.
Eu sou luxo!
De repente, perco meu Oswald para a Pagu. É... Patrícia Galvão conseguiu ser mais
atraente que eu. Atraente só não, feminista, revolucionária, mulher de
coragem... Fisgou o meu peixe. Fiquei por baixo? Sim, mas fila anda. E
Osório foi meu novo amor...durou pouco.
Preciso me casar de novo. Testar meu poder de sedução. Casarei com um homem bem mais novo. Tenho
atributos. Luis. Isso! Luis só tem 20
anos menos que eu... Casei-me, mas novamente tudo se acabou. A doença é assim,
chega, quando menos se espera.
E agora fico
a pensar... fiquei só e paralítica. Perdi minha filha, 1966. Um ano após aquela
cirurgia errada... Um simples problema de coluna, jogou-me numa cadeira de
rodas até os meus últimos dias. Posso garantir aos meus fãs, nunca pintei o
sete! O Ovo, eu pintei! Não só o
Ovo, mas Carnaval em Madureira, Sol poente, Lua, Abaporu, A Negra, Operários... Mas os conservadores
me detonaram. Que culpa eu tenho se as mulheres do século XIX se acorrentaram?
Cada qual que cuide da própria vida. Foi o que fiz, vivi a minha vida.
Eu acreditei
no sonho de ser feliz. Para realizá-lo
faria tudo de novo. E a minha arte
mostra o quanto eu fui feliz, realizada, plena. Fui uma mulher que assumi a
minha feminilidade sem me deixar abater com as críticas. Trouxe a Europa para a
arte brasileira, respeitando a nossa cultura, a nossa gente. Aliás, fiz mais,
levei a arte do Brasil para a Europa. Se “meus amores” sumiram quando perdi os
movimentos das pernas, eles não imaginaram que o talento da grande mulher vai
além delas...
Elisabeth Amorim
Escritora baiana/ Professora de Literatura/
Mestra em Crítica Cultural
* Fotos da exposição ocorrida no Colégio Estadual Lauro Farani, Iaçu - BA
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