domingo, 30 de novembro de 2014

Natal com Tio Sam ( conto de natal)


Samuel era rico e poderoso. Sam, como era conhecido pelos amigos mais íntimos, era dono  de todo quarteirão. Todos no seu bairro e até os mais distantes tinham por ele uma grande admiração.
Sam apesar da aparência jovial era um ancião, super  malhado, mas conseguia despertar os suspiros das mocinhas casadoiras. E diante dele, restavam-lhes tremer as pernas e sonhar:
_Ah, se ele me notasse…
Irreverente, Sam não as enxergava. Estava preocupado em acumular mais riquezas e malhar todos os dias. Até que naquele dia, véspera de natal, ao descer da limousine nas proximidades de uma creche algo lhe chamou a atenção. Enquanto os seguranças tentavam afastar os curiosos e jornalistas, uma figurinha quase surreal se destacava. O frio intenso e a neve deixou a cena mais inusitada.
Sam  não consegue parar de olhar para aquela menina magrinha, toda coberta de gelo,  encolhida e agarrada um cachorro vira-lata, tão branco quanto ela. O grande destaque era um gorro laranja, luvas vermelhas e óculos grandes e ridículos.  Sam nem precisou falar uma palavra. Bastou um olhar para a menina, para que os jornalistas se voltassem  para a direção do seu olhar. E ela tornou-se o centro das atenções, como “boneca de gelo”.
_Dr. Samuel, não temos culpa se ela veio encostar aqui. Nós havíamos limpado a área.
_Desculpe-nos Exma. iremos tirá-la daqui.
E Samuel com o dedo apontado para a menina coberta de gelo:
_ I want you…
Os seguranças vão  atrás da garotinha bombardeá-la de  perguntas. Como ela havia furado o bloqueio, se ela não sabia que aquela área estava cercada, o que ela estava fazendo ali na passagem oficial… E agora ela teria que acompanhá-los, pois a Vossa Exma. gostaria de falar com ela…
_Com… com… comigo!? O tremor na voz era de frio.
Frente a frente com o homem mais poderoso do mundo, a menina não se intimida. Tremendo de frio, sempre agarrada com o seu cãozinho… Com os olhos ativos não esperou ser interrogada. Ela é quem interroga na inocência dos seus 12 anos:
_ O que o senhor… quer de mim?
Samuel não conseguiu segurar o riso. Ele querer algo de uma menina? Não restou  alternativa a não ser sorrir, sorrir bastante… E resolveu entrar no jogo dela.
_Eu? Não sei ainda… Estou pensando. Será que quero de você esse cachorrinho? Ou os seus óculos… E você, o que quer de mim?
_Nada. Foi o senhor quem me procurou… Pensei que o senhor queira sorrir um pouco… Eu faço as crianças daqui da creche sorrirem e sonharem  quando conto historias para elas…Mas hoje com a sua presença fui dispensada…E elas não vão sorrir.
Aquela resposta desconcertou Samuel. Engoliu em seco, contendo a emoção. Nunca encostara em alguém sem que essa pessoa deixasse de lhe pedir um favor. E  aquela menina  não pediu nada.  Ele poderia dar o mundo de fantasia. Realizar todos os sonhos… E ela é quem oferece sonhos?! Intrigado, revida:
_Como nada?! Você está com vergonha da imprensa? Vou dispensá-la… Com um gesto todos os jornalistas se afastaram. Peça o que você quiser.  Vamos, peça! Algo que faça você também  sonhar,  ser feliz. O quê?
_ Posso pedir mesmo?
_Claro, garota. Não te falaram que sou o Tio Sam?
_E se eu pedir duas, “Tio Sam”?
_ Você pode pedir mil, duas mil coisas… que te darei.
E a menina esfregando as mãozinhas de frio, sacudindo o cabelo para tirar o excesso de neve, com o olhar aflito, como se tivesse certeza de que ele recusaria o seu pedido, insiste:
_Tio Sam… Eu posso pedir o que eu quiser, mesmo?!
_Impaciente, Samuel já imaginava que teria que comprar um parque infantil para o bairro daquela menina… E sorri, não era nada…  sacode a cabeça num gesto afirmativo e aguarda:
_Eu quero… Eu quero um livro infantil novo e um casaco de lã.
E graças ao “Tio Sam” aquele Natal foi o mais feliz para as crianças daquela creche.
                                          Elisabeth AMORim

            

     Ps: caso o caro leitor queira imitar "Tio Sam"... eis as opções:

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http://www.apededitora.com.br/contato/ ( A boneca de pedra/infantil) 


quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Um Natal Diferente ( conto)



Em torno da mesa a família se reunia para desfrutar a ceia natalina. Ao soar as doze baladas, um amigo secreto para a famosa troca de presentes. No entanto Malvina estava inquieta. Adolescente de 16 anos, havia tempo que deixara o sonho de Papai Noel para trás. Mas sentia que aquela noite seria diferente.
Participa ativamente das brincadeiras com as primas, sorria e disfarçadamente olhava o avançar das horas. Nada de anormal acontecia. Duas horas da manhã. Os parentes que vieram de longe vão dormir. O papo vai rareando, até que fica na sala apenas Malvina e uma bela árvore de natal.
Ela não sabe o que deu em sua cabeça. Passou a olhar para os enfeites das árvores e sorrir, de repente eles começam a falar com ela:
_Oi garota, por que está inquieta? É Natal!
Olha para um lado e para outro. Achou que estava enlouquecendo. Como poderia aqueles bonequinhos de plásticos falarem?   Era a sua chance de matar a curiosidade. E resolve responder:
_Oi, é por isso mesmo que estou assim. No Natal trocamos afagos, presentes, mas sinto que falta algo diferente acontecer para modificar as pessoas. Vocês concordam comigo?
_Claro que falta, Malvina. Você está correta. Agora cabe você fazer o seu natal diferente _ isso um papai Noel com seu tradicional saco vermelho_ respondeu.
_Como? Se todos estão felizes, não estão? Vejam quantas luzes, presentes, comidas...
Logo um lindo ursinho, também pendurado na árvore toma a palavra e diz:
_Malvina, não há luz maior do que a que vem de Cristo. E Natal é uma festa cristã. Tudo que você está vendo, sem essa Luz dentro de ti,  brilha falso.
E Malvina finalmente conseguiu encontrar “alguém” que pensava como ela. Sorriu e perguntou:
_O que devo fazer para que esse Natal seja diferente?
E todos os bonequinhos da árvore em coro responderam:
_Faça você a diferença!
Depois dessa resposta cada qual voltou para mesma posição inicial. E Malvina fica abobalhada, ajoelha-se diante da árvore para aproximar dos seus enfeites e insiste:
_Como? Como? Como?
De repente...
_ Malvina, esses enfeites de natal não são de chocolates! Vá dormir garota que você já comeu demais por hoje.
E sua mãe volta para o quarto, antes  apaga as luzes, deixando apenas o pisca-pisca da grande árvore de natal.


                                       Elisabeth Amorim

                                             Conheça os livros dessa autora

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quarta-feira, 26 de novembro de 2014

A menina do nariz iluminado ( conto de natal)



Aquela menina sabia que dentro de poucos minutos a luz se apagava. E sob  a iluminação fraca de um candeeiro ela se debruçava sobre os livros. Na penumbra do quarto  viajava nos textos lidos. O seu predileto era de uma porquinha que se chamava Pirula.  Como ela conseguia ler no escuro? Mesmo na escuridão ela encontrava a luz.
Ninguém sabia da luzinha na ponta do nariz que aquela criança carregava. Não conseguia ficar com a cabeça baixa por muito tempo. A luz pedia para erguê-la o mais alto possível, para iluminar pessoas ao entorno.  Ela tentava falar daquela luz invisível aos olhos humanos, mas ao perceber que não seria entendida, guardou segredo.
Um dia magoaram a menina e ela chorou.  A sua luz ficou fraquinha e puft! Apagou! No quarto escuro ela ficou tentando fazê-la voltar. Nada. Olhava no espelho e seu nariz não tinha nenhum sinal de luz. Ela ficou mais triste.  Começou e refletir sobre o que ela havia feito de bom ou ruim  para tê-la perdida...
_Como poderei ler no escuro?  Como andar de nariz para cima? Como ser feliz se o meu  brilho se apagou?  Pensava a  triste menina. De repente uma luz gigante acendeu em sua mente e disse:
 _ É Natal, faça o seu pedido! Peça luz para todas as pessoas! Deseje luz que você também será iluminada!
E a menina sorriu. Correu até a meia onde havia deixado o pedido de uma boneca, retirando-o escreveu:
_Papai Noel, por favor, quero luz para todos nós! 
Ela estava crescendo e a pontinha do nariz ficara pequena para carregar a sua luz, por isso o brilho foi para a mente. Com a mente iluminada aquela menina iria  ajudar outras pessoas descobrirem a própria luz. Com um bloquinho nas mãos ela passou a escrever cada passo para ser feliz. E o primeiro era nunca desejar mal ao próximo, pois o seu desejo profundo, realiza-se em você.
 Ficava triste porque muitos ainda não conseguiram fugir do quarto escuro... talvez tentando encontrar a luz perdida... Ela escrevia que a luz de cada um não se perde, muda de lugar justamente para acordar um talento adormecido... mas poucas pessoas  liam o que ela escrevia. Nem na escola onde ela estudava seus textos tinham valor.
Quando chegava o Natal seu sonho se renovava.  E era época de novos pedidos:
_ Papai do Céu, precisamos de luz! Queremos mais luz em nosso caminho!
Papai do Céu se comoveu com aquele pedido tão profundo daquela criança e convocou o Papai Noel para mais aquela missão...
E Papai Noel  veio do mundo dos sonhos, cheio de brilhos e cores para nos lembrar que a  a luz externa natalina não passa de pisca-pisca. Já a duradoura está dentro de cada um, no coração de quem pratica o bem. Às vezes ela corre para mente, mãos, olhos... Xi, quando andamos de cabeça baixa por conta dos obstáculos, a luz escorrega e vai parar na pontinha do nariz. E se chorar... ela vira uma estrelinha cadente.
                                  
                                              Elisabeth Amorim*

*Caso queira comprar livros da autora fineza entrar em contato diretamente  nos sites das editoras PROTEXTO  ou   APED. 



Papai Noel desajeitado ( conto )

*

 Eis que naquele Shopping Sem Nome contrata um Papai Noel muito simpático, mas ingênuo. E a regra é bem clara:

               NÃO É PERMITIDO TIRAR FOTO DE CRIANÇA COM PAPAI NOEL            
 SEM  AUTORIZAÇÃO DOS PAIS!
TEMOS FOTÓGRAFOS PROFISSIONAIS!

 O gerente do SHOPPING SEM NOME não era bobo, sabia que o uso da imagem infantil poderia causar problemas. E   precavendo-se dos aborrecimentos futuros, criou a tal regra, e claro,  traria dinheiro extra para o shopping.
Mas o bom velhinho não percebeu o capitalismo natalino… Não aguentava ver uma criança querendo o colo. Logo abraçava e descumpria as ordens do Shopping Sem Nome. O chefe da seção de olho no Papai Noel, pois havia fotos espalhadas em todos os cantos e o dinheiro dessas fotos não entrava… Tentou pegá-lo no pulo:
_Papai Noel, como o senhor explica fotos no mundo todo, e nada de dinheiro para o Shopping?
_ Sei não. Será que não está no caixa dois?
_Nada de piadas. O senhor está deixando ser fotografado?
_Uai! Como vou saber? Por acaso os espiões avisam?
Enfurecido pois o Papai Noel sempre escapava. Ele resolve mandar trazer a filhinha para fotografar com o bom velhinho… isso sem pagar um tostão para o shopping.
E a menininha chega com a babá. Apenas quatro anos de idade diz:
_Papai Noel, o senhor deixa Tinita bater uma foto  minha com o senhor?
-Claro, meu linda! Venha aqui, venha!
E coloca a criança no colo.  As fotos foram tiradas por Tinita que postou aqui e acolá… Resultado: o Papai Noel foi demitido para aprender cumprir ordem. Caiu na cilada ao fotografar com criança no colo sem a autorização dos pais…   Ele deveria ter coberto com a mão o rosto da criança para evitar a exposição. Esse foi o argumento usado para justificar a demissão e blá, blá, blá…
Injuriado, Papai Noel resmungava, pois não queria perder a imagem de bom velhinho e ao mesmo tempo atender as exigências do mercado:
_ Se digo não para uma criança, sou mercenário. Se digo sim, sou demitido!
Foi procurado por jornalistas e ao entrevistá-lo:
_Papai Noel, o senhor poderia nos dizer por que foi demitido?
_ Ora, porque eu não “meti a mão” na cara da criança na hora de fotografar…
Novo escândalo se formou envolvendo  o bom velhinho desajeitado.
                                                 

                                                         E. Amorim

Reflexão: Se digo não para uma criança, sou mercenário. Se digo sim, sou demitido!
* Imagem disponível na web (  site BEM-PARANÁ)

A imagem independe do texto FICCIONAL, apenas ilustrativa.

domingo, 23 de novembro de 2014

VIVA O POVO BRASILEIRO ( resenha)



RIBEIRO, João Ubaldo. Viva o povo brasileiro. Coleção Mestres da Literatura Brasileira e Portuguesa. Rio de Janeiro e São Paulo: Editora Record, 1984.                                                  
                                         


A ficção de Ubaldo Ribeiro é um registro de uma sátira da história brasileira,  desde o  “viva” que aparece no título que poderá seguir caminhos distintos, homenagear o povo com os aplausos, honrarias  ou simplesmente fazer com que esse povo resista diante dos heróis forjados onde o local de liberdade  é representado em espaços atípicos, como  um terreiro de candomblé, senzalas abandonadas e até nas  malocas do Caboclo Capiroba. 
A história  e a anti-historia  se entrelaçam nos séculos e séculos que aparecem na narrativa, na qual os  "heróis"  se mesclam com os "anti-herois" , tornando-os unos para conquista de benefícios.  Quais as identidades que prevalecem na construção e busca da nacionalidade? Quem ouve o discurso das margens? Em “Viva o povo brasileiro” são nas  vozes “inaudíveis” de ex-escravo  mutilado, de  caboclo,  índios que a história do Brasil é  passada a limpo.
O livro de João Ubaldo Ribeiro, baiano da Ilha de Itaparica, traz forte posicionamento político, uma vez que o autor se utiliza dos personagens para mostrar  como a historia da nossa gente é mitológica em nome de uma construção de identidade nacional.  Assim, o romance  inicia com o processo de desconstrução de mitos, tendo como cenário a luta pela independência,  na qual o herói  Perilo Ambrósio é totalmente cassado pelo narrador  e pelo escravo que ele o mutilou para forjar um ato heroico.
Perilo Ambrósio, um português rico, utiliza-se da guerra para levar vantagem e tornar-se o herói nacional, finge estar do lado dos brasileiros, com intuito de se apropriar das riquezas da própria família portuguesa. No entanto o seu heroísmo reside em  se esconder  das forças militares em momento de combate e  matar um  escravo, lambuzando-se do sangue inocente, mutilar outro para não contar a sua “ação de heroísmo” e assim,  forjar a identidade de guerreiro pela pátria e  tornar-se  o barão de Pirapuama. Como grande figura do romance, Perilo cria para si uma autossuficiência exacerbada e a utiliza das formas nefastas, seja para estuprar alguém , assassinar ou para masturbar-se para impor a sua vontade.
O grande espaço do romance é justamente a Ilha de Itaparica, onde ocorre a modelação  da identidade nacional. Talvez, sem intenção de reconto o romance trabalha com quatro  séculos, XVII a  XX  sob o olhar dos excluídos, as guerras e conflitos vem à tona, através dos fatos históricos ocorridos nesse período, sendo que dessa vez,  negros e  índios, caboclo   os grandes oradores , contrapondo-se com a versão oficial. O tema central é justamente a construção de identidade que parte  da desconstrução de heroi nacional.
Em “ Viva o povo brasileiro” a grande heroína é Maria da Fé, fruto de uma violência sexual, ela forma um grupo de resistência a identidade legitimada ao povo brasileiro. Com a "Irmandade do Povo Brasileiro", o projeto de identidade desponta das classes populares, oprimidas e excluídas. O romance dialoga com a linguagem polifônica, sendo elite e povo,  a voz do povo por muito tempo anulada ganha uma outra dimensão na narrativa de Ubaldo Ribeiro.
É interessante lembrar que o romance de João Ubaldo é de fôlego. Não é uma história fácil de ser compreendida,  pois a linearidade sofre desarticulação,  sendo que o romance histórico do século XX está  contracenado com a história dos  séculos passados,  quando a morte de um adolescente pescador, alferes mártir,  precisa encontrar uma outra alma para continuar  existir e resistir. E século adiante, encontra-se no Caboclo Capiroba “terreno” propício de resistência a versão cultural imposta no país.   Por não “servir” para a sociedade,  o Caboclo  Capiroba cria em sua maloca ( apicum) um local de resistência. A negação a imposição linguística, cultural e física torna-se Capiroba  um “morto vivo” por não adequar ao modelo identitário do país, e o “canibal” esquisito  é  visto como objeto de repulsa, escárnio e exclusão social.
Assim como Capiroba, à  medida que os personagens vão desconhecendo os intitulados heróis,  os espaços de resistências  políticas se multiplicam, sejam nas senzalas abandonadas, casa de farinha, acampamentos, terreiro de candomblé. Não resta dúvida que o texto de Ubaldo Ribeiro funciona como espécie de denúncia a história escrita que “apaga” a história oral, no qual o colonizador por ter um domínio com as letras e culturas forja o heroísmo nacional às custas de muitas mortes e mutilações.  O guardião da história é justamente um cego que através da tradição oral  vai passando de uma geração para outra o que acontecia nos bastidores de uma guerra...até chegar ao terreiro de Rita Popó.
O baiano Ubaldo Ribeiro consegue fazer do seu romance  em quase 700 páginas uma grande paródia sobre as questões identitárias brasileiras desde a morte de um inocente “ Brandão Galvão”  a outras mortes em nome da pátria livre, “mãe gentil”.
A memória e a história caminham na mesma direção  e esta resenha atribuo créditos ao brilhante  ensaio “Memória, historia e ficção” da pesquisadora Rita Olivieri- Godet, no qual ela “disseca” o romance desse nosso baiano e que muito me ajudou nas leituras feitas sobre a produção de Ubaldo Ribeiro.
 Em “Viva o povo brasileiro” mostra uma luta vindo de baixo,  das camadas pobres, uma luta na qual os guardiães da história encontram abrigo em  local restrito, particularizado, mas de perseguição, resistência  e permeados de poder. Uma história na qual as testemunhas foram violentadas e impedidas de falar, mas através de gestos, sons estranhos, as “verdadeiras narrativas” sobre fatos históricos são capturados e traduzidos. Como um grande quebra-cabeça as peças vão sendo colocadas em seus respectivos lugares e desnudando para o leitor como os representantes da elite se distorceram para permanecerem em seus locais de conforto.
Enfim, o livro de Ubaldo Ribeiro é uma excelente opção de leitura labiríntica, pois o tempo inteiro mexe com os conhecimentos prévios do leitor, não há linearidade das ações dos personagens  com isso faz com que  leitor e personagens se encontrem e se percam nos conflitos  de guerrilhas sejam através de : Canudos, Paraguai, Farrapos, Independência, Abolição, República...  Entre as idas e vindas das alminhas dos personagens, ( e por que não, dos leitores?) Patrício Macário um militar de carreira, sente-se angustiado com própria atuação nas guerras, chegando ao final do romance, Macário torna-se integrante da cultura popular, através da sua inserção no terreiro de Rita Popó. Mas é em Maria da Fé que  a representação da nacionalidade é fortalecida, deixando de lado a identidade propagada pelo Estado-nação e  assimilada pelo povo, mas na  “Irmandade do Povo Brasileiro” o grito dos excluídos torna-se audível.
Acredito que a “Maria” que aparece no romance tem dupla carga, por ser mulher e trazer toda uma simbologia de resistência que já vem de outras épocas, as “marias” sofredoras, Maria, mãe de Jesus, a Santa Maria...  todas capazes de romper com  as correntes a elas destinadas, vencendo as lutas. Por outro lado ao ser acrescentado  o  “da Fé” há um reforço em  seu nome,  no livro de João Ubaldo Ribeiro, nosso baiano de Itaparica, a Maria heroína,  guerreira leva em sua bagagem a “fé” em dias melhores.
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                                            Bahia, junho/2014

                                                                                   Elisabeth Amorim

*imagem da web.

O Sobradinho dos Pardais ( resenha)



*

SALES, Herberto. O Sobradinho dos Pardais. ed 31, São Paulo: Melhoramentos, 1994.


     Herberto Sales (1917 – 1999) baiano da cidade de Andaraí, Chapada Diamantina, estreou na literatura aos 27 anos de idade, com o livro Cascalho, que o despontou para o mundo. Jornalista, contista, romancista e memorialista é autor de várias obras  premiadas. Pertenceu a Academia Brasileira de Letras e traz uma escrita acadêmica muito forte e notável.
Entre os vários títulos para o público adulto como Além dos Marimbus A prostituta, Rebanho de  ódio, Cascalho, A telha que falta entre outros,  o autor também se  destacou na literatura infantil como A feiticeira de Salina, O casamento da raposa com a galinha, O homenzinho dos patos, O burrinho que queria ser gente... No entanto é em O Sobradinho dos Pardais que esse escritor baiano brinda à vida com essa brilhante história infantil.
     O que uma história infantil tem de especial? Ela como todos os livros desse baiano tiveram dezenas de publicações e traduções em vários idiomas, só esta editora paulista( dessa edição analisada) fez aproximadamente umas dez edições desse livro. Isso já nos revela a grandiosidade dessa história contada por um baiano, mundialmente conhecido e praticamente um estranho em seu espaço.
     Espero está a altura para descrever o conteúdo desse livro que traz uma simples história de um casal de pardais, protagonistas da narrativa.  Dona Pardoca e Sr. Pardal. Esse casal sempre viveu na mata, livre, feliz. Os pardais tinham como afilhado o filhote de Dona Joaninha-de-barro. Mas, não estavam preparados para a chegada dos próprios filhotes. Ao aproximar o inverno Dona Joaninha ao ver sua comadre na chuva e ela bem confortavelmente acomodada em sua casa, aconselha a procurar uma moradia fixa. Preferencialmente em um beiral de alguma casa.
     Surpresa, o mundo que Dona Pardoca conhecia era a mata, nem sabia o que era beiral, muito menos o que era uma casa.  Quando Sr. Pardal chega, ela logo se entusiasma para falar sobre deixar a mata. Ela queria conhecer beirais. Ela queria conhecer o mundo. Sr. Pardal cauteloso, explica para sua esposa os perigos que existiam fora da mata. Como a cidade reservava várias armadilhas. Porque a cidade era dos homens.
     Não adiantaram os avisos, Dona Pardoca insistia que saindo da mata, seria mais fácil criar os futuros filhotes. E o frio poderia prejudicá-los sem um abrigo adequado. E acaba convencendo o Sr. Pardal que rapidamente decidem partir logo cedo para a cidade dos homens, antes que as chuvas ficassem mais intensas. O que levam? Apenas uma palhinha da mata, para servir de primeira iniciativa para o ninho que iriam fazer bem distante.  Com isso, Dona Pardoca vai correndo se despedir de Dona Joaninha  dizendo que jamais voltaria para aquela mata, onde nem casa ela tinha. Ouviu a advertência da comadre que desejava bastante sucesso, mas nunca se deve cuspir no prato que se come.
     Partiram e ao chegar num sítio encontra um sobradinho desabitado.  E lá fizeram o ninho, tiveram dois filhotes. E a alegria é imensa. O beiral tinha várias janelas, e de lá a família de pardais desfrutam de uma felicidade enorme. A preocupação do Sr. Pardal é que algum homem apareça naquele sobradinho e estrague a felicidade.
     Um dia, Sr. Pardal estava no sítio, pois já estava  observando a área para caso, surgissem moradores, já pensar em outro lugar. E não percebe que em seu sobradinho alguns homens entraram. Já Dona Pardoca, ao ouvi o barulho fica admirada com aqueles dois seres diferentes em sua residência. E para dá as boas vindas, canta  bem bonito. Coisa que irritou um dos homens, ao olhar para cima e vê-la voando baixo entoando uma linda canção. E de imediato, um dos homens deixa a ordem para tapar todos os buracos do forro, pois não queria saber de pardais  na sua casa.
     Dona Pardoca como não entendia a língua dos homens, achou que agradou os novos visitantes. E foi tranquilamente descansar  com os seus filhotes, enquanto o Sr. Pardal estava ausente. E para sua surpresa, recebe uma barrofada de massa de cimento que só teve tempo de correr por instinto materno para proteger seus filhos.  Fica desesperada por conta dos pequeninos, pois choravam, sem condições de voo. Ela ao carregá-los para tentar escapar pela outra janela, nova massa... Escuridão total.  Pensou na liberdade da mata.
Ao retornar alegre com a descoberta de um novo beiral,  Sr. Pardal não encontra uma janela do seu sobradinho aberta, todas foram lacradas com aquela massa. Ele arranhava, piava, chorava desesperado... Sem nada poder fazer. A  cidade era dos homens. O seu lamento não iria salvar vidas. E foi no desespero ele se conscientizou. E passa a comunicar com sua amada, pedindo calma. Enquanto ela dizia: "não temos solução, fecharam as nossas janelas!"  Sr. Pardal passa a olhar para todos os lados, de repente se lembra de uma velha goteira, por conta de uma telha quebrada. E desesperado ele se direciona para lá, apreensivo, torce para que os homens não tenham percebido a brecha na telha. Para seu alívio, estava no mesmo lugar. E com sacrifício ele passa a chamar a sua amada para aquela pequena abertura, e guiada pelo som da sua voz ela com os filhotes seguem. E assim, daquela pequena abertura Sr. Pardal salva toda a família, juntos retornam para a mata.
     Vejo esse texto como um hino à vida, à persistência, um brinde ao amor.  O pardalzinho consegue ensinar a ter força diante dos obstáculos. Por mais que eu tente transmitir o sentimento que exala de um texto como esse, não tenho essa competência. Quantos de nós desistimos quando encontramos as portas travadas?  Quantos de nós jogamos a toalha nas primeiras críticas?  Quantos de nós já fomos ridicularizados pelo sistema nesse jogo de vale tudo para se aparecer ou derrubar o próximo?  E o que fazemos? Como esse pardalzinho direta ou indiretamente nós construímos outra morada. Buscamos novos abrigos. Às vezes das brechas, das margens, da lama... E assim como Sr.  Pardal e Dona Pardoca nós também brindamos a vida. Às vezes as conquistas são minúsculas para os gigantes, mas para nós, escritores e escritoras aprendizes, meros pardaizinhos no mundo dos homens,  cada leitor conquistado é uma vitória comemorada.

                     Obrigada pela leitura e excelente final de semana!

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                                    Bahia/2013
 
                                                                                                 Elisabeth Amorim

* imagem da web.

sábado, 22 de novembro de 2014

Essa terra ( resenha)


TORRES, Antonio. ESSA TERRA. Rio de Janeiro: Record, 2001.
 
 
 
     Antonio Torres, romancista  baiano, nasceu em 1940, tem uma vasta obra literária traduzida em diferentes países: Argentina, França, Alemanha, Itália, Inglaterra, Estados Unidos e  Israel. Morou em Portugal por três anos, atualmente vive no Rio de Janeiro. Obras como  O cachorro e o lobo e Essa terra foram bem recebidas pela crítica. E é justamente o romance Essa terra, com o posfácio de Vânia Pinheiro Chaves que irei apresentar de forma  singular as primeiras impressões do livro desse grande escritor que eleva para o topo a literatura da Bahia.
     Essa terra, romance de ANTONIO TORRES  retrata o drama de uma família moradora do sertão baiano, na pacata e atrasada Junco, atual cidade de Sátiro Dias que vê o primogênito Nelo, filho do Sr. Antão, mais conhecido na cidade com Sr. Totonho,   migrar para São Paulo.  Nele  todas as esperanças de dias melhores são depositadas. A trajetória de Nelo e demais parentes é marcada pelos desacertos narrados pelo irmão mais novo, Totonhim, o personagem-narrador do romance.
     O que a cidade grande oferece a Nelo e a muitos nordestinos despreparados para enfrentarem as exigências do mercado de trabalho? Como se deu o abraço do progresso paulistando com o nordestino de Junco?  Será que o sonho da cidade grande não poderá se transformar em pesadelo? Vamos seguir a narrativa de Torres numa tentativa de responder as questões.
     O livro ESSA TERRA é dividido em quatro partes. E em todas elas conseguem prender a atenção do leitor do início ao final, pois é dificil não se solidarizar com a dor de Nelo e da sua mãe que não conseguem lidar com as perdas, decepções, revoltas ao vê todos os sonhos depositados no filho mais velho, morador da cidade grande indo por terra, sem nenhuma chance de reacendê-los.
     O romance traz como marca o processo migratório, marcado pela total desterritorialização do ser com todas as problemáticas e crises identitárias. Assim, chama a atenção a partir dos títulos de abertura dos quatro capítulos: “Essa terra me chama”, “ Essa terra me enxota”, “ Essa terra me enlouquece” e  “ Essa terra me ama”  como em círculo, a mesma terra que chama é a mesma que expulsa aos seus filhos por conta da falta de emprego e perspectivas de mudança.  Os “expulsos” da terra tem consciência que um dia retornarão, pois a afinidade com o local não desaparece.



       Nelo migra para São Paulo e por lá passa boa parte da vida.  Se no início havia condições de enviar algum dinheiro para mãe, com o tempo as necessidades aumentaram e o que Nelo ganha não dá nem para a própria sobrevivência. Constitui família, mas vê a mulher fugir com seus filhos em busca de outras oportunidades de dias melhores.         Desterritorializado, Nelo  percebe que nada construiu durante os vinte anos na cidade grande. Os sonhos tornaram-se utópicos e os pesadelos aparecem, ele passa por todas as humilhações possíveis na cidade de São Paulo. E quando se vê no fundo do poço, doente, fragilizado, revoltado, agredido, humilhado, resolve voltar para Junco, a terra natal que acreditava que o Nelo era o filho rico do Sr. Totonho.
     No entanto, Nelo retorna mais pobre que todos daquele local, e diante de tantas expectativas que fora criado em torno de filho primogênito, ele não consegue encarar os pais e comete o suicídio por meio do enforcamento na sala principal da casa dos pais.  O irmão mais novo, Totonhim, coube  a incumbência de informar aos pais e arcar com todas as despesas feitas durante as quatro semanas que passara na terrinha.
        A morte de Nelo  impacta  a cidade de Junco juntamente com a mãe do rapaz,  diante dessa dura notícia enlouquece, e mais uma tarefa  árdua é deixada para o Totonhim: ser o responsável para cuidar de toda a papelada para o internamento. Assim, o personagem-narrador faz, apesar da quantidade de irmãos espalhados, a mãe só percebia Nelo como único capaz de salvá-los daquele ambiente de miséria. E ao cumprir  as obrigações com o funeral do irmão e internamento da mãe, Totonhim resolve ir também para São Paulo.
       O livro de Antonio Torres retrata com grande propriedade o processo migratório dos sertanejos para São Paulo e toda a violência  que muitos sofrem na cidade grande, indo além das agressões físicas, mas morais e psicológicas. Nelo é mais um “condenando que vai para o inferno” conforme gritava o doido “Alcino” ao anunciar o suicídio do rapaz. Talvez, pela pouca memória, não sabia que inferno, Nelo já estava vivendo há muito tempo.  Desempregado, sem contato com os filhos e esposa, sem  dinheiro reservado, vê-se obrigado a retornar para o interior baiano, para uma cidade em decadência que ele havia deixado para traz há vinte anos.
        O escritor baiano consegue mostrar que por mais que a terra enxota e enlouquece, ela consegue despertar o amor. E quando todos abandonam é para a terra que o filho volta. E isso, no final do romance o personagem-narrador, o Totonhim que jamais havia sido notado pela mãe, pois para ela era sempre o Nelo que ocupara toda a vida., resolve seguir o percurso do irmão, pede demissão do emprego da prefeitura e anuncia a sua viagem marcada para São Paulo, talvez, ele busca na fuga uma forma de ser notado e amado também.



 
            Junco  como muitas outras cidades nordestinas não consegue manter os “pássaros” sob as próprias “asas”. E a busca da liberdade sem a qualificação profissional, muito bem exigida no mercado de trabalho, muitos “voos” são rasteiros, não conseguem se distanciar do solo, ganhar altura e confiança.  E o texto de Torres com grande propriedade mostra uma São Paulo distante, fria, insensível, contraditoriamente desejada, sonho de consumo de moradores nordestinos que a  construíram em seus imaginários como um grande berço da civilização e consequentemente riqueza. E o ir para aquele “paraíso” representava para o lugar, melhorar de vida, compartilhar daquela riqueza.
         Enfim, Antonio Torres tira toda a maquiagem do “Eldorado” e mostra crua e competentemente a saga de uma família de sertanejo quando perde duplamente o filho Nelo, primeiro, para São Paulo e após tanto tempo de expectativas de retorno, perde para a própria Junco, atual cidade Sátiro Dias, deixando-a  sem ter em quem depositar os sonhos de progresso e melhora. Ao mesmo tempo, o romance mostra de maneira circular que a vida prossegue, outros sonhos nascem. Talvez, com os mesmos destinos fadados ao fracasso como os antigos, mas a terra de origem impulsiona fantasiar, querer algo melhor, mesmo sendo uma terra infértil, árida, enlouquecedora e castradora de sonhos, mas em “Essa terra” os sonhos continuarão existindo.
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                                                          Elisabeth Amorim/2013

    * Todas as fotos são resultados de oficinas literárias utilizando o método de desmonte, com estudantes de Ensino Médio, escola pública.

Literatura de mainha 6 - Afirmação de identidades

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