Norma era uma dona-de-casa que queria ir
além. Por pensar diferente não era vista como normal pelos seus vizinhos.
O normal era aceitar ser apenas dona-de-casa e ponto final. Mas Norma fingia
ignorar as interrogações e os discursos implícitos no olhar de cada um. Mesmo
morando na zona rural, com oportunidades mínimas de mudança de vida, ela
resolveu enfrentar todo o tipo de preconceito para ir em busca do seu sonho:
ser professora.
Não era fácil para Norma ter que enfrentar
aquela jornada. Às vezes, pegava carona em cima de caminhão, sabia dos
muitos degraus que teria a sua frente, mas estudava muito, conseguiria subir
aquela escada até o topo, mesmo o sistema empurrando-a para baixo. No vilarejo
em que morava era conhecida, talvez, por quebrar tabus... A gravidez na
adolescência, mãe solteira e o último deles era sair regularmente por conta dos
estudos, colóquios, seminários, congressos, workshop... as palavras
estranhas naquele local contribuíam para aumentar os rótulos. Vieram as
cobranças do diploma na parede. Morava numa casa humilde, mas já havia pintado a
parede para colocá-lo, apesar da dedicação daquela jovem senhora de 33
anos, a parede continuava vazia.
A cidade grande era como uma selva de
pedras e concretos para Norma. Hostilizada por não fazer parte do grupo urbano,
as roupas simples, linguagem monossilábica, olhar triste eram elementos
de escárnios. Ninguém validava o esforço daquela mulher para chegar até
aqueles prédios com bonitas fachadas. Norma levava a sua marmita quase vazia,
fruto da dieta forçada. Ela tinha que conciliar despesas domésticas e livros
por conta daquele sonho. Mas, na sala de aula, Norma não passava de um
número, especial, talvez, porque aquele local não foi feito para ela.
Mas Norma estava ali, contrariando as
estatísticas e as normas locais. Firme, mãos calejadas por conta do cabo da
enxada, pele bronzeada do sol intenso, achava-se dura na queda. Nunca
vivenciara tanta violência. Exclusão não é apenas expulsar, mas invisibilizar o
outro. E Norma naquele espaço não passava disso, uma mulher invisível.
Toda semana ouvia uma piadinha do
motorista: “_ Ô mulher que dorme fora de casa!” Não respondia,
pois ele não entenderia. Norma era a Macabéa daquele local, tinha a
estranha mania de achar que chegaria a “hora da estrela”.
Norma enfrentava os problemas mais
difíceis para conseguir o seu diploma, a sua vaga. Era uma prova de
resistência... a cada dia subia alguns degraus, mas era obrigada a descer
tantos outros para cuidar do pai da sua filha que retornou muito doente,
a filha que segue o exemplo da mãe, engravida na adolescência, e para
completar, lidar com a discriminação dos seus colegas mais jovens e
apadrinhados. Entre as visitas na UTI e livros havia uma Norma. Entre as
teorias e a prática, também estava Norma. Entre a sabedoria e a ignorância,
Norma! Mesmo dominando o conteúdo, era sempre a ignorante.
Limpou uma lágrima traiçoeira, não
sentiria saudade do seu neto que não vingou. Seria mais um que sofreria o
preconceito por nascer pobre naquele lugar. Foi esperto, antecipou demais o
nascimento, não resistiu!
Novas lágrimas, limpou as com raiva. Raiva
de ser pobre. Raiva de trazer no nome uma marca. Raiva de ser saco de pancadas
da vida. Dessa vez ela não queria perder, não queria descer nenhum degrau, pois
foram anos de caminhada, empurrões e rasteiras. Já arranhara bastante, não
queria mais nenhuma cicatriz. As doenças inesperadas vieram para sua
família tirando o sorriso, o sono, a tranquilidade, não! Não deixaria levar
também o seu sonho.
Norma passava sete horas diárias estudando. Às vezes, nos
quartos de hospitais, lá estava ela com um livro, enquanto a outra mão segurava outra tão necessitada de apoio quanto a sua.
Ensaiou um sorriso quando viu o resultado da sua prova, nota
máxima. Bem, dessa vez nada poderia dar errado, a vaga era sua.
Quantas vezes Norma teve que recomeçar? Dessa vez não teria recomeço. Ela
conseguira! A sua dedicação valera a pena, iria prosseguir. Até que...
- É ELA QUE ESTÁ AQUI DE NOVO?!
Feche a porta, rápido! Não a deixe entrar!
- E o que eu falo? Eu já disse para
ela que estava satisfeito...
***
Norma ao ser empurrada da escada pela
sexta vez, não conseguiu se levantar. Chegou a hora da estrela... sua hora. A
escada parecia que movia, talvez na tentativa de protegê-la, mas não adiantou.
E corpo chocou-se violentamente no chão.
Aquele ser leve como um passarinho, pela primeira vez, acolhido. O olhar
vago e assustado se dirigia para a
parede recém-pintada, pois tantas tintas envelheceram. Sorriu. E a vida ia passando como um filme...
entre o cair e o levantar não teria mais uma norma. Sorriu novamente, acomodou-se melhor,
sentia o céu em festa à sua espera, porém, seu último olhar foi para a parede
nua.
E. Amorim
*imagem da web, apenas ilustrativa.
Ps: inspirado no conto " O
pecado", de Lima Barreto.
Alguns comentários de Escritores do Recanto das Letras
http://www.recantodasletras.com.br/contoscotidianos/5656292
Alguns comentários de Escritores do Recanto das Letras
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Belíssimo texto! Parabéns E.Amorim!
ResponderExcluirObrigada, Alzira.
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