Ao chegar à Bahia o carioca de Cantagalo, o jornalista e escritor Euclides da Cunha(1866-1909) para cobrir a Guerra de Canudos enxergou sertanejo pobre, caipira, miserável, inculto e descreve-o como “Hércules-quasímodo”, uma mistura de
força e feiura numa só pessoa. Quem eram os fanáticos que seguiram cegamente o beato chamado Antônio Conselheiro? Não sou de Canudos, nem presenciei o
massacre da guerra, mas tenho que carregar essa marca literária da rebeldia baiana que jogaram
sobre as costas... Todo baiano é sertanejo?
Todo baiano é desengonçado? Todo baiano é rebelde? Todo baiano é
preguiçoso? O cenário baiano pode não ser
o melhor, mas confesse, ser baiano é outro nível.
Ainda bem que nunca me perguntaram se
recebi algum conselho do grande beato para tornar-me escritora... os
fogos proféticos anunciados já se cumpriram. Finalmente, posso seguir em paz o
meu caminho. Acho que sou mais uma
sobrevivente da Guerra de Canudos. Nem se preocupe, leitor, não sigo
pokmon, baleia, lula, cobras nem lagartos... Sabe por quê?
Gosto é de literatura, escrevo literatura, só
não faço ganhar dinheiro com ela, mas isso faz parte da nossa cultura nordestina. Jorge Amado por onde andava na região
cacaueira via brigas entre coronéis do
cacau, emboscadas, e meninos de ruas
vivendo de pequenos furtos assim, das mãos poéticas os garotos
foram transformados em “capitães da areia” na grande Salvador. Em suas andanças
viu também mulheres faladas falando, impondo e se fazendo respeitar, mulheres
da vida? Não, mulheres de vida vivida, sofrida e excluída, isso é bem
diferente. E nem me pergunte se conheci
o “Pedro Bala” o líder dos capitães, o “Professor”,
um exímio contador de histórias para as crianças carentes, esse juro, queria conhecê-lo,
a “Gabriela”, uma retirante que chegou
faminta à cidade de Ilhéus e transformou o costume da época, “Tieta” e até a “Dona Flor”, mulheres
emblemáticas com personalidades fortes, também sinto informá-los, não tenho notícias.
Aliás, as personagens são paridos com muita dor, por
sinal. E isso não faz cesariana! A dor
só não é maior quando tem quem as abracem.
Dona Rachel de Queiroz foi outra escritora que
olhou para o nordeste e viu o quê? Uma seca miserável! A de 1915 que
assolou o Ceará, onde gado e gente não tinham o que comer nem onde ficar. Uma
seca que colocou o homem nunca condição subumana, disputando com os bichos o
mesmo pedaço de carne podre. Ei, como
pode você me perguntar se eu conheci o Chico Bento com a sua família de
retirantes? Poxa! O romance "O Quinze" traz esse cenário.
O Chico Bento não é o das histórias em quadrinhos de Maurício de Sousa, é o vaqueiro que ficou
desempregado com a seca... Ah, deixe para lá. Já disse, ser baiano é outro
nível, aqui tem muitos que leem além dos gibis.
Eta “Vidas secas”, meu Deus! Muito
sol, muita dor, fome, sede, vaqueiros sem gados, crianças desumanizadas, mas
acompanhados de um fiel animal de estimação, seguidores da Baleia! Desde a
década de 30, no cenário nordestino já havia quem venerava Baleia. Dizer que
essa baleia não passava de uma cadela magra e sarnenta, é apenas um detalhe. Dessa vez veio de Alagoas esse olhar
nordestino, Graciliano Ramos mostrou como o mundo é permeado de vidas secas. O
mundo é cheio de patrões “espinhentos como mandacaru” e de “Fabianos” que recebem
os espinhos no seu caminhar seco, sem vida, sem sonhos.
Você já parou para pensar como a
literatura ao centralizar o olhar para
os problemas sociais de uma região, de certa forma contribui para os estereótipos? Muitos
incorporam os personagens como se fossem reais ou padrões. Recentemente, um aluno ouviu de
um professor renomado: “Não gosto da literatura de Jorge Amado porque ele
vulgarizou a cultura baiana escrevendo muitas imoralidades”. Ele queria o meu parecer sobre essa fala, dai
a necessidade dessa crônica. Logo eu, uma baiana qualquer que nunca consegui o canudo de doutora? A minha escrita é marginal, sabia?
Bem, a primeira coisa a dizer é “vulgarizar uma cultura” é o termo muito forte,
mas vamos lá. Disse ao aluno que toda
opinião é pessoal, cada professor, seja especialista,
mestre ou doutor na área, tem a sua defesa e muitas
outras leituras para sustentá-la, cabendo ao ouvinte ou leitor abraçar ou
não. Apesar de conhecer
os romances de Jorge Amado, minha leitura
é pessoal, frágil e apenas por prazer, não para detectar 'imoralidades', por isso penso diferente
desse professor. Tudo é questão de olhar. O que você procura num texto literário? Mas essa briga entre a produção amadiana e intelectuais
é antiga, acredito que nunca terminará. E como sugestão indiquei de dois
romances, após as leituras voltarmos a
discutir e debater.
Mas, a primeira vista, parece-me ser uma birra pessoal, tipo “eu sou bom escritor, intelectual e não sou lido, enquanto o Jorge
Amado que escreveu ‘imoralidades’ ganhou o mundo...” o leitor conhece o final desse peleja. Muito se parece com os olhares lançados para
as produções de Paulo Coelho, mesmo pertencendo a Academia Brasileira de Letras e sendo muito lido no mundo todo, pessoas nos meios acadêmicos
olhares enviesados “Não é literatura, mas manual de auto-ajuda de um bruxo!” Tem a receita, Paulo? Por favor, onde encontrarei a alma-gêmea que abraçará a literatura marginal?
Cada escritor tem o seu
estilo, e Jorge Amado apresentou Ilhéus, Itabuna e toda a política dos coronéis
para o mundo. A forma dele escrever é a sua marca. Se você me perguntar se eu
falo palavrões ou escrevo, a resposta é não, mas como baiana, ouço constantemente. Da mesma forma Herberto Sales apresentou para o mundo o
comércio desordenado de diamantes na Chapada Diamantina, através do romance
“Cascalho”, voltando-se para as ações desumanas dos coronéis do garimpo. É o
olhar de cada um para o seu lugar.
Ah, tem também o baiano Antonio
Torres que em “Essa terra” apresenta a cidade natal “Junco” e os sonhos e
desilusões de sair do nordeste para melhorar de vida em São Paulo. As
desventuras do protagonista “Nelo” que não consegue lidar com as perdas, decepções
e sonhos desfeitos, por isso retorna a terra natal para cometer o suicídio. Uma
terra que ama, chama, enlouquece e ao mesmo tempo enxota os filhos. É mais um
cenário nordestino.
Um cenário com uma cultura diversificada,
rica, onde povos lutam, escrevem, estudam e
sonham sorrindo ou chorando, mas seguem vivendo a vida intensamente. É
redundância? Não! É apenas o olhar desmontado nordestino! Onde tudo acontece
com abundância, inclusive as violências contra a literatura marginal costumam ser
redundantes também, mas vale lembrar que nessa guerra de canudos de quem é melhor na caneta, o Jorge Amado era advogado.
ELISABETH AMORIM
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