domingo, 24 de abril de 2016

Zezé, o amigo da lua

*

Seu nome ninguém sabia ao certo qual era.  Mas por falta de um nome próprio resolveram chamá-lo de Zezé.  Menino magro, pés descalços, olhar faminto e suplicante. Poucos notariam os seus pequeninos desejos, afinal, com a aproximação de Zezé as pessoas tratavam de sair da sua frente. Agarravam as bolsas com força, outras protegiam as carteiras e colocavam-no para correr.  Zezé não era bem-vindo nos espaços públicos transitados.
Zezé vivia das migalhas de alimentos que caíam no chão, das sobras do almoço de  muitos outros e desperdício alheio... Quando o dono do restaurante não estava olhando, aquele garoto que não tinha mais que 11 anos,  muito ágil,  entrava em cena com aquele apelo mudo:
_ Estou com fome... Posso pegar o que está sobrando no seu prato? E esse resto de arroz? E esse macarrão que irá para o lixo?
Amedrontados com aquela aparição pública em forma de gente pequena  e faminta, os clientes diziam com a voz trêmula:
_Pode, pode, sim. Leve, leve rápido. E saia daqui, moleque!
_ Deus te abençoe e te aumente – Era essa resposta dada pelo garoto.
E como um raio, Zezé limpava a mesa com a sua sacolinha plástica. Ninguém ali estava preocupado com a bênção divina anunciada por Zezé, por isso nem respondiam.  Quando o dono e empregados do restaurante percebiam a presença de Zezé, ele já estava dobrando a esquina com o seu almoço e jantar garantidos. Zezé fazia parte daquele local, mesmo negando e sendo renegado, ele era o outro lado da fartura: miséria humana.  Essa que muitos tentam ocultar, mas das sobras e sombras ela se revela.
  Zezé era tão assíduo nas redondezas... mas faltou naquele dia. Ninguém sentiu a sua falta.  Zezé e cão às vezes se confundiam, porém com a sua ausência o almoço ficou mais saboroso, sem a incômoda presença da cara de fome daquele garoto, expulso feito cão sem dono. Essa era a diferença, o cão tinha dono, Zezé, não.
 Uma semana após o sumiço de Zezé, ele reaparece, como fênix ferido.  Parecia mais magro e mais triste, como se isso fosse possível.   Ele não estava mais se preocupando em pedir as sobras do almoço, dessa vez o seu pedido chamou atenção:
_ Moço, posso levar esse pedacinho de carne para a minha amiga? Ela está muito doente...
Aquela palavra “amiga” chamou a atenção dos clientes daquele restaurante. Aquele menino  magrinho, pobre, sujo,  tinha uma amiga...  Quem seria a amiga de um garoto de rua?
_ Qual o nome da sua amiga, Zezé?!
Zezé se assustou. Pois como menino de rua não se lembrava de alguém que parava para observá-lo ou  questionar algo sobre a sua vida pessoal. Era como um ser invisível. E de repente, um cliente se interessa por ele e por sua amiga.  Com um sorriso amarelado pelas cáries, responde:
_ Lua.
_ Lua?! Sua amiga se chama Lua? Lua... de Luísa, Lúcia, Luciana?
Novo sorriso de Zezé,  desfrutando aquela sensação íntima de ser notado... diz:
_ Não, não. Lua.  Apenas isso, Lua de lua, mesmo.  A Lua é minha amiga e guia.
_Ah, entendi... traga a sua amiga para que possamos conhecê-la qualquer dia desses... Certo?!
_Sim... mas o dono daqui poderá não gostar...
E dessa vez os clientes que estavam em volta da mesa, sorriem.  E dizem para ficar tranquilo, pois ele e  Lua seriam seus convidados. E chamam o gerente e avisam sobre o convite feito a Zezé e sua amiga, dando-lhe  todas as sobras do almoço sem nenhum protesto.  
Zezé voltou para o seu cantinho lá no viaduto do outro quarteirão. Olha para Lua imóvel e fala que encontrou novos amigos.  Quem sabe a vida poderia mudar? Feliz com essa perspectiva de mudança, Zezé comemora com a sua  amiga:
_ Lua, eles me notaram! E eles também te notarão, minha amiga. Levante-se, trouxe comida!
No dia seguinte, o restaurante lotado, a conversa é interrompida com entrada daquele menino com a sua melhor roupa, mesmo surrada, com alguns remendos, percebe-se que estava limpa. E acompanhado de perto de uma cadela bem magrinha, amarrada numa velha coleira.  Não deu mais que três passos... aos berros, acompanhado de algumas vassouradas, tiveram que deixar o local.
Enquanto os clientes riam a valer das tentativas de defesa da criança com as mãozinhas magras, segurando a vassoura para que Lua não fosse atingida. Enquanto Lua ameaçava um ataque, mas sem forças nada fazia, a não ser gemer com as pancadas.  Zezé saiu dali ferido, mas com o orgulho de si mesmo por ter defendido sua amiga.  Ainda ouviu um cliente dizer sorrindo:
_ Eu sabia que esse moleque de rua não tinha amiga nenhuma. Ele mereceu as vassouradas, estava zoando com a nossa cara! Quem vai  querer amizade com esse pivete?
Abraçado com Lua na calçada, secava as lágrimas, num lamento se levantou para dar a resposta à distância, para evitar novas agressões a sua fiel companheira:
_ EU SOU AMIGO DA LUA, SIM!  E ela me acompanha onde eu for. E não ia fazer mal algum, ela só está com fome e doente... e eu também.
As gargalhadas aumentaram ao saber que Lua era a cadela de Zezé. E decidiram  mudar o nome de Zezé. Ele seria chamado de “Amigo da lua”, quando voltasse lá no outro dia.  Só que não tiveram chance, porque Zezé saiu e nunca mais voltou. No cantinho do viaduto ele foi encontrado abraçado com Lua.

Eclipse total... a lua cheia de tristeza se recolhia para velar o sono eterno de seus amigos.

                              Elisabeth Amorim/ Salvador, BA, 2016.


*imagem da web.

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