Pensa que estou sozinha? Nada disso. Sempre busco um ombro amigo para juntos desmontarmos os cenários prontos. E Modernismo é isso, uma ruptura constante. Desde a Semana de 22, esse choque da cultura e contracultura acontece, para no final das contas sermos engolidos pelas convenções culturais. Afinal, é o cânone quem manda no pedaço.
E não se assuste com essa frase “só a antropofagia nos une”, Oswald já se manifestou há muito tempo sobre isso. Agora, quero alguém que ouça a minha história de luta e discriminação mais velha que o mundo.
Eu poderia ser mais uma daquelas operárias da fábrica que minha patroa representou, mas não sou. Ela quis homenagear-me de uma forma especial. Apresentando para o mundo um dos meus atributos. Mostrar que negras sempre trabalharam. Muitos brancos já mamaram em nossas tetas, não era assim que nos viam? Uma ama de leite! Uma negrinha boa de cama! Com minha patroa não, ela sempre olhou além das lentes sociais. Ela tinha o toque poético no olhar. Pintou-me sensual e solitariamente.
Em 1923, fui “A negra” de Tarsila do Amaral. Cinco anos depois, apaixonei-me por ele, o meu Abaporu. Foi amor à primeira vista, a imagem dele chocava o mundo, eu não ligava, amava-o em silêncio, achava que minha patroa fez ele para mim. Não me conformei quando o “abaporu” foi dado de presente para Oswald, o Andrade. Sabia que aquilo era amor. Um amor tão forte e tão canibal que um ano depois...
Não deu outra, minha patroa e artista predileta nos retratou juntinhos, lembro-me de 1929 como se fosse hoje. Estávamos no nosso momento de deleite. Uma negra amando aquele Abaporu tão diferente, nas mãos da artista tornamo-nos iguais. E aquele nosso encontro tão íntimo, onde a perna dele encostava suavemente no meu seio... Flash!
Ele, o mundo inteiro conheceu, enquanto eu, não passei da negra velha que o abaporu deu uma xavecada.
E a antropofagia aconteceu.
Elisabeth Amorim
*Tarsila do Amaral, Antropofagia, 1929. ( disponível na web)
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