Vicent Van Gogh, Um par de botas, 1885 |
Não sei, talvez, era um sonho bobo. Mas alimentava-o diariamente. Influência da televisão nova que chegara em sua casa. Ela ocupara a sala principal, enquanto todos paravam para admirá-la, Simba nem era notada como gente. A TV era pequena, mas mandona, dela que vinha a ordem diariamente: – Consumir! Imitar! Adorar!
Hipnotizados obedecíamos e continuamos fiéis a ela. E no calor da juventude, a mocinha negra e pobre ficava a invejar as artistas maquiadas, unhas grandes e bem pintadas, roupas extravagantes, com certeza, um luxo bem distante do orçamento das admiradoras. Simba era o seu nome, se tinha outro, ela não revelava. Apenas os colegas de escola sabiam que Simboline era nome de gente. Gente? Será?
Desde o dia que Simba viu sua atriz predileta usando botas, ficou a imaginar um par de botas nas suas longas e finas pernas. Simba não acreditava em Papai Noel nem coelhinho de páscoa. Seu pai era um ajudante de pedreiro, o único saco que carregava nas costas era de cimento, e não era vermelho… Não! Nem adiantava pensar em quebrar o cofrinho, as poucas moedas não cobririam o valor das botas desejadas.
Num dia como outro qualquer, a sua mãe, catadora de papelão, chega da rua com várias sacolas de roupas usadas e numa delas, encontrava-se um par de botas. Não era exatamente como Simba sonhava, mas botas eram botas! Com um pouquinho de graxa, limpeza, aquelas botas velhas poderiam durar mais um pouco. Simba comemorou. Sabia que aquelas botas eram a realização do sonho. E ficou ansiosa, circulando a mãe:
_ Mãe, a senhora trouxe essas botas para mim?
A mãe de Simba parecia refletir sobre o que fazer com aquele material, olha para os pés da jovem, em seguida olha os próprios pés, confere o tamanho… Não! As botas dançavam nos pés. Dona Chica estica os braços, meio contrariada, passa as botas para Simba. No mesmo instante o sorriso iluminou o rosto lindo de Simba. Os dentes pareciam mais alvos de felicidade. Foi correndo para o seu quartinho, onde dividia com sua irmã Marta. De forma frenética, limpa-as removendo toda a sujeira de algum porão… Calça as botas reluzentes e pela primeira vez sentiu que era uma artista. As botas de salto alto, cor preta, cano longo deram um destaque as pernas finas de Simba.
Enquanto Simba andava de lá para cá, no seu “toc, toc, toc…” Marta chega da rua, olha invejosamente para Simba. E pergunta irritada:
_ Por que você está usando essas botas? Quem te emprestou?
Simba não conteve a felicidade e responde com os olhos brilhantes:
– A bota é minha! Nossa mãe ganhou na rua e como não serviu para ela… me deu. Não é linda? Agora estou parecendo uma artista da televisão…
Marta nada responde e vai ao encontro da mãe. E sem aviso prévio diz irritada:
_ Mãe, cadê a bota que a senhora trouxe para mim?
A mãe em silêncio olha à sua filha predileta. Marta insiste:
-Mãe, eu quero aquelas botas que Simba está usando! Aquelas botas são para mim!
Simba acompanhou tudo de perto, volta correndo para o seu quarto. A mãe sem dizer uma palavra, vai atrás de Simba. Encontra-a sentada na cama, chorando convulsivamente, ao mesmo tempo em que se desfazia do seu sonho. A mãe ajuda-a com um puxão mais firme e sai do quarto com um par de botas nas mãos.
Elisabeth Amorim*
* Leitor, estou em busca de parcerias para publicação, caso você conheça alguém que se interesse, por gentileza, indique meus textos para análise. Agradeço.
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